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Como dizia o meu amigo Credidio Rosa, falecido no dia 6 de agosto de 2014, com aquele típico sotaque paulistano, vinho tem que ser bão. Eu acho que aprendi esta lição muito cedo, como se verá a seguir. Lá pelos anos cinquenta, em Minas, vinho era coisa para ocasiões muito especiais. Natal, batizados e aniversários dos donos da casa. Meu pai era filho de um português nascido às margens do Douro (possivelmente Cinfães), que aportou no Brasil aos dezesseis anos e acabou se radicando em Machado, Sul de Minas. Acho que ele deve ter transmitido alguma coisa da cultura vinícola ao filho, e este a nós.
Mas meu pai não ficou famoso na família propriamente pelo vinho que tomava só de vez em quando, mas porque se meteu a fabricar cerveja em casa. Sim senhor, mestre cervejeiro e professor. Cerveja artesanal como aquela feita pelos monges trapistas de Westvleteren na Bélgica, considerada uma das melhores do mundo. Eu não sei exatamente porque ou quem colocou esta ideia na cabeça dele, quando era tão mais fácil comprar a própria no Bar do Plínio. Ele reuniu apetrechos, levedos e fórmulas para a dita fabricação caseira, rolhas para arrolhar as garrafas, e arame para segurar o bicho. Já se vê que havia uma certa expectativa de grande fermentação. Talvez não apenas uma, mas duas ou três. Às vezes, quando penso nisso, cogito se ele não errou de página, como a (minha irmã) Verinha fez com um certo quibe, e andou lendo a receita seguinte que devia ser de como se fazer um bom espumante.
Elaborada a bebida, com grande ciência, e acompanhamento de toda a família, as garrafas eram cuidadosamente colocadas numa pequena adega que existia em minha casa, debaixo da escada para o segundo andar. Era o que bastava para que elas virassem rojões. Saía rolha, arame, garrafa, tudo pelos ares, como uma bomba. A vizinhança talvez pensasse que havia estourado mais uma revolução, daquelas em que o 12 RI ameaçava bombardear a cidade. Não, meu pai não era um anarquista, como o da Zelia Gattai. Era um intelectual, professor de línguas, que tinha apenas uma boa intenção de se tornar um mestre cervejeiro. O teto da copa lá de casa vivia manchado de jatos de cerveja.
Meu pai tinha também a mania de fazer um fermentado de casca de abacaxi - coisa muito comum na época - e por algum motivo desconhecido enterrava as garrafas no quintal durante certo tempo. Comentando com meu amigo português Abel Pinto Caldeira, muitos anos depois - em plena Revolução dos Cravos -, ele me disse que havia este costume em aldeias do norte de Portugal. Só que lá enterrava-se vinho.
Meu pai, dadas as suas origens, tinha uma grande paixão por parreiras. Quando visitei a Alfama, o famoso bairro de Lisboa, e vi aquelas uvas por cima das vielas, lembrei-me lá de casa. Também tínhamos parreiras espalhadas pelos muros da casa, seguindo uns varais de arame, e que davam umas uvinhas pretas bem raquíticas. Lendo esta frase, minha filha Bárbara, agora uma enófila iniciante, comentou comigo: “quem sabe, eram uvas Cabernet Sauvignon”. É, pode ser...
Depois que meu pai morreu, minha mãe resolveu fazer um parreiral decente, mandou construir uns caramanchões de madeira no quintal, e plantou uvas de primeira, segundo ela. De fato, enquanto aquela casa existiu, sempre houve fartura de uvas, sobretudo na época do Natal. De vez em quando eu recebia a incumbência de ir até uma fábrica de sapatos que existia na avenida do Contorno, perto do Bar do Plínio. Levava uma daquelas sacolas grandes de feira e trazia retalhos de couro, que depois eram enterrados ao pé das parreiras. Nunca perguntei por que, nem para quê. Credídio achava que era para ver se virava um pote de ouro...
Acho que agora está na hora de contar como eu aprendi a pesquisar a qualidade dos vinhos. Eu tinha aí coisa de uns onze anos, estava no curso de admissão do Colégio Anchieta, e passando pela igreja São José vejo lá anunciado: barraquinhas neste fim de semana, com muitas prendas. Lá fui eu, sozinho, de bonde. Joga daqui, especula dali, e, de repente, tiro uma linda garrafa de vinho naquele jogo de argola. Pura habilidade manual, coisa que me espantou. Fui para casa com o coração aos pulos. Era muita sorte mesmo. Entrando em casa, fui saudado pela família como o novo Guilherme, o conquistador. Que proeza! Vamos abrir domingo, junto com aquela macarronada da mama. Eu já fazia planos de frequentar todas as barraquinhas programadas pelas paróquias de Belo Horizonte. Era preciso aproveitar aquela maré de sorte.

Mesa posta, pão da padaria Boschi para acompanhar a macarronada, começou o cerimonial de abrir a garrafa e me deram este privilégio, na ausência do meu pai. Antes não tivesse aberto. Era água. A partir daí eu repito como o Credidio: vinho tem que ser bão. Se não for, que pelo menos seja vinho.

(Do livro Armazém Colombo, Carlos Vieira, 2005/2012, em nossa Livraria Virtual)
(6 de setembro de 2014)

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