Foi a menina Diana, aquela mesma citada no livro A volta do Abominável, no trecho em que o personagem principal dá-lhe um conselho (para que trate de arrumar um emprego no TRE do Jardim Botânico, coisa que ela não fez), quem me deu de presente este livro admirável de José Saramago. Uma mistura de duas épocas, na verdade dois romances entrelaçados, em que se destaca a figura de Raimundo Silva, revisor de livros, e lá do século XII, D. Afonso Henriques, os bispos de Braga e Coimbra, e os mouros sitiados no Castelo (que viria a ser de São Jorge), na região de Santa Maria Maior, Lisboa.
Mas foram as personagens femininas, se me permitem, que conquistaram este leitor. A senhora doutora Maria Sara, como a ela se referia sempre a jovem telefonista Sara, e a pobre Ouroana, descrita como a barregã de um cruzado, e por quem o soldado Mogueime se apaixona. Tudo isso imaginado por Raimundo Silva, que se propõe, ele apenas um revisor, a reescrever a história do cerco de Lisboa. Olha que reescrever a história já era uma prática antiga, dos escribas do início da cristandade, e até antes disso, dos egípcios e aqueles da Babilônia.
E tem a diarista Maria, que me fez lembrar de uma outra personagem - Josefa Amélia - com olhares indagativos quando se depara com duas rosas brancas no apartamento de Raimundo Silva, e recebe telefonema de uma certa Maria Sara. A pergunta "Quer que troque os lençóis hoje?" deixa desconcertado nosso revisor, que teima em esconder seus sentimentos.
Há ainda um detalhe curioso, embora insignificante dentro do enredo, que é a rua onde morava o revisor. Rua do Milagre de Santo Antônio, em Alfama. Maria Sara observa que embora o nome venha no singular, são vários os milagres representados nos painéis de azulejos existentes na rua. Maria Sara, que declara ter rompido um relacionamento há apenas três meses, e por isso está vivendo em casa de um irmão, acaba muito interessada na história que Raimundo está escrevendo e quer ver de perto onde ele trabalha. Mais não conto.
E o leitor perguntará, e os mouros? Já sabemos há muito tempo que foram expulsos da Península Ibérica, mas deixaram marcas que permanecem até hoje. Inclusive no aspecto físico de muitos descendentes.
(Livro História do cerco de Lisboa, José Saramago, 1989)
(29 de abril de 2023)
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Nosso autor independente Washington Conceição acaba de lançar um novo livro. São dezoito histórias sobre diversas pessoas. As histórias são contadas naquele estilo coloquial muito característico dele, que torna a leitura saborosa (se podemos dizer assim), aquela que o leitor não quer interromper de jeito nenhum, que vara a madrugada, que deixa ao término de cada capítulo um sorriso nos lábios, que evoca outras situações nossas do passado. Washington nos fala de amigos e de famosos, com os quais teve contato ou admira. Entre estes últimos Dorival Caymmi e Cantinflas. Dentre os amigos, lá está Credidio Rosa, que tanta falta nos faz naqueles intermináveis cafés da manhã no Leblon.
Por falar no Leblon, há uma história muito interessante relatada pelo autor com relação ao escritor e cronista João Ubaldo Ribeiro, que morava nas imediações da rua Dias Ferreira. E, para ser justo com São Paulo, o livro fala também de um colega de turma do autor na Escola Politécnica da USP, conhecido entre os colegas apenas como Zuza, que se tornou governador do estado: Mário Covas.
E o livro traz fotos surpreendentes para quem compara com os tempos mais recentes. Uma que me chamou muito a atenção foi da turma do segundo ciclo no Colégio Presidente Roosevelt, em São Paulo, uma escola pública, onde todos os alunos estão de terno e gravata, e o professor Cruz, de matemática, parece um lorde inglês. Mas tão surpreendente quanto a foto é a memória privilegiada do autor. Que também se revela um profundo conhecedor de música, embora, modesto, tenha revelado não ser muito afinado ao cantar. Deve ter havido alguma reclamação dos vizinhos, no icônico edifício "Meia Lua", na rua Timóteo da Costa. Só pode ser isso.
O livro pode ser encontrado no formato eBook na Amazon e impresso na Loja Uiclap.
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Esta expressão francesa, citada por Honoré de Balzac em 1835, parece que foi cunhada na idade média, referindo-se a uma espécie de troca entre o senhor do castelo e os camponeses. Algo como vocês me servem, me abastecem, e eu os protejo. A expressão também reflete uma postura distinta da sociedade atual. Aqueles mais afortunados, ou que ocupam posições de destaque na vida cultural e política de um país devem olhar pelos menos favorecidos. Seria uma questão ética ou moral.
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"Triste Bahia, oh quão dessemelhante" (Caetano Veloso)
Aproveitei viagem que fiz recentemente, após as eleições brasileiras de 2022, e andei relendo o livro de Hélio Silva (1904-1995) que encerra o chamado Ciclo Vargas. Trata-se de 1954: um tiro no coração. É impressionante como as coisas não mudam no Brasil, há uma repetição cansativa de fatos e posições políticas. Eu queria apenas destacar alguns pontos do livro.
Primeiro, que Getúlio não tencionava ser candidato em 1950. Estava recluso em São Borja. Era cortejado por diversos políticos, que queriam apenas seu apoio, não a sua candidatura.
Segundo, em depoimento de Ernani do Amaral Peixoto, quando consultado o Presidente Dutra por que razão não apoiava abertamente o candidato do PSD, Cristiano Machado, ele teria respondido que o motivo era porque o irmão dele seria comunista. Este irmão vinha a ser Aníbal Machado, pai de Maria Clara Machado e filho de Marieta Monteiro Machado, nome de rua em Sabará (no nosso livro Sabará 18, obra de ficção, aparecem duas personagens chamadas irmãs Machado).
Terceiro, a eleição do Clube Militar em 1950, quando houve um embate entre uma corrente dita nacionalista e outra entreguista. Venceu a primeira corrente, com o general Estillac Leal. O outro concorrente foi o então general Cordeiro de Farias.
Quarto, vencida a eleição por Getúlio, iniciou-se um movimento para impedi-lo de tomar posse. Argumentava o lado perdedor de que ele não teria vencido por maioria absoluta, algo inexistente na Constituição, à época.
Quinto, queria destacar alguns trechos da primeira manifestação pública de Getúlio, depois de ter vencido as eleições.
"Deus é testemunha de minhas relutâncias íntimas em participar de uma campanha que pudesse agravar os vossos sofrimentos e fomentar discórdias e animosidades entre os brasileiros."
"O governo não é uma entidade abstrata, um instrumento de coerção ou uma força extrínseca da comunidade nacional. Não é um agente de partidos, grupos, classes ou interesses. É a própria imagem refletida da pátria na soma de suas aspirações e no conjunto das suas afinidades e lealdades."
(Carlos G. Vieira)
(Livro "1954: um tiro no coração", Hélio Silva, edição L&PM Pocket, 2007)
(25/11/2022)
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Outro dia escutei Heródoto Barbeiro, o conhecido jornalista, fazer um comentário durante a apuração do segundo turno das eleições de 2022 que me fez pensar bastante. Ele dizia da possível transferência da sede do governo do Estado de São Paulo do Morumbi para o Centro da cidade, como uma forma de revitalização de uma área muito degradada. Como antigo morador eventual do Morumbi, acostumado a passar pelo Palácio do Governo quase todos os dias, nunca pensei que se pudesse cogitar em voltar ao Centro.
Pois é este mesmo Heródoto, nascido e criado no Centrão, na Rua Nioac (entre Frederico Alvarenga e Rua dos Carmelitas), quem nos brindou, ainda em 2007, com um livro delicioso com histórias do coração de São Paulo. Eu conheci São Paulo, primeiro, pela Avenida Ipiranga e a Praça da República, nunca me arrisquei a ir mais longe do que os arredores. Meu velho amigo e autor independente Álvaro Esteves foi morador da Praça Roosevelt. Depois, fui conhecendo a Avenida São João, Largo do Arouche, Avenida Cásper Líbero, e adjacências. Jantar no Almanara ou no Bar Brahma.
Heródoto nos fala de vários pontos icônicos de São Paulo. Dentre eles, o Teatro Municipal, a Praça da Sé, a Estação Júlio Prestes, o Edifício Copan, o Edifício Martinelli, o Viaduto do Chá, o Vale do Anhagabaú, a Rua do Glicério, a famosa Rua 15 de Novembro e a Igreja da Boa Morte (lembrei-me disso porque hoje é exatamente o Dia de Finados). Sem esquecer da Rua 25 de Março, conhecida no Brasil todo. O livro é um passeio nostálgico pelo centro velho de São Paulo. Nós aqui neste blog arriscamos, também, apresentar um pequeno roteiro da cidade, com o título pretensioso de Conheça São Paulo. Mas o livro de Heródoto Barbeiro discorre com conhecimento de causa, com histórias (como a do motorneiro chapa 2665), e mostra em detalhes um outro lado desconhecido, ouso dizer, até para os paulistanos.
Carlos G. Vieira
(Livro Meu Velho Centro, de Heródoto Barbeiro, Boitempo Editorial, 2007)
(2 de novembro de 2022)