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"ERA UMA ÉPOCA EM QUE as mulheres levavam cestas enormes, cheias de roupas, para lavar na beira do rio. Ninguém falava que aquilo poderia poluir as águas rio abaixo, e penso que nenhum peixe deixou de existir por causa daquele sabão feito em casa, em grandes tachos de cobre, com sebo recolhido no matadouro. 
Havia entre elas uma que era considerada de segunda categoria, porque a cesta que levava era sempre abarrotada de roupas e ela passava horas ajoelhada nas pedras até muito tempo depois que as outras se retiravam, as mãos enrugadas pela água fria, não cantava, não falava mal da vizinhança, nem do marido. Quase não falava. Monossilábica, se me entendem. Atividade diária incessante. Era preciso faturar algum para a comida, porque além da roupa da casa, lavava para fora, como se dizia antigamente. Dizem que a clientela era enorme. Tinha até lista de espera. Além de lavar muito bem lavado, ainda passava a roupa com grande esmero. 

Enquanto as lavadeiras atendiam por nomes comuns, como Maria, Conceição e Tereza, talvez até alguns prosaicos como Albertina, Mirinda e Ordália, ela chamava-se simplesmente Fernanda. "Fernanda de quê?" Costumavam indagar, e ela respondia apenas “Fernanda de Jesus.” 

Pois estava, um dia, nossa Fernanda enxaguando as suas roupas nas águas do Rio das Velhas, como sempre fez desde os treze anos de idade, quando percebeu que alguma coisa brilhava por entre as pedrinhas da margem. Catou com jeito e era uma pedra dourada. Calculou pelo peso na mão que fosse coisa de umas 200 gramas. Guardou no bolso do casaco para olhar melhor depois, com calma, e antes de chamar a atenção daquele povo. 

Enxaguou mais umas roupas e viu outra pedra brilhando. Meu Deus, o que será isso? Não havia ninguém por aquelas paragens que não sonhasse em encontrar ouro no Rio das Velhas. Talvez nem a resignada Fernanda. Esta pedra agora era maiorzinha, talvez umas 300 gramas.

Agora ela já não dava muita atenção à roupa, e começou a suar frio. Será ouro, minha Nossa Senhora da Conceição? Sem chamar a atenção das faladeiras que continuavam a contar seus casos e falar mal das sogras, a nossa Fernanda foi olhando pelas beiradas, cutucando uma pedrinha aqui e outra ali, e de repente achou outra. Mais uma de 300 gramas. Em pouco tempo foi recolhendo assim com muito cuidado estas pedrinhas douradas que teimavam em aparecer em sua frente. A esta altura já queria ficar lavando ali até anoitecer, ou até no dia seguinte, se fosse possível, de medo de alguma outra lavadeira tomar o seu lugar. Voltou a enxaguar as mesmas roupas umas três vezes. Como ninguém dava muita atenção a ela, já que ela não falava mal de ninguém e não sabia de novidade alguma, ela foi ficando para trás, até ficar sozinha na beira do rio. Aí ela sentou-se, porque as pernas bambeavam um pouco e estava com uma vontade louca de fazer xixi.

Enfiou as mãos no bolso e contou. Eram sete pedras de vários tamanhos. Se fosse ouro, deviam pesar mais de quilo. Mas claro que não podia ser ouro. O ouro já havia acabado no Rio das Velhas há muitos e muitos anos, só uns loucos continuavam com as bateias na vã esperança de ficarem ricos. Ricos talvez não, mas que desse para chegar na venda e fazer uma compra daquelas, e deixar aquela turma da cachaça de olho comprido.

Fernanda juntou a roupa na cesta e decidiu ficar mais calada do que nunca. Ninguém iria notar que uma sorumbática por natureza estivesse falando menos ainda. Dia seguinte anunciou em casa: “Hoje não vou lavar roupa no rio.” Isto sim foi uma surpresa total. O marido olhou de soslaio e só perguntou se estava doente. “Não, hoje vou fazer compras no comércio,” respondeu. Aí a casa quase caiu. Ninguém entendeu nada.

Fernanda colocou a sua melhor roupinha de domingo, sandália de plástico, pegou uma sombrinha vermelha e foi lá para os lados da Rua do Fogo Apagou. Procurava um ourives de confiança. Uma pessoa para cuja família ela já havia lavado roupa, gente conhecida, que também falava pouco. Não queria ver a notícia correndo de boca em boca, porque então a sua vidinha sofrida mas controlada poderia se transformar em inferno com muita facilidade.

Podia não conversar, mas não era boba. Em casa não havia mostrado para ninguém o que encontrou. Para o ourives levou a menor pedra somente, e uma história complicada para dizer como havia encontrado aquela pedra. Mas sabia que não era muito difícil associar à sua atividade de lavadeira em tempo integral. Se ainda havia gente que buscava ouro no Rio das Velhas é porque alguém, de tempos em tempos, encontrava algum.

O ourives examinou a pedra, pesou, raspou, mordeu e decretou: “É ouro do bão.” Fernanda não moveu um músculo, ficou esperando o quanto. O ourives olhou, revirou os olhos, fungou, passou a mão na testa, olhou novamente, e disse o preço para comprar. Fernanda, com a mesma calma de sempre, respondeu: “É pouco.” Fez um gesto para pegar a pedra e o ourives voltou à carga.

“Olha, vou pagar para você o que ninguém aqui pagaria. Conheço você há muitos anos e não vou te enganar.”

Deu o novo preço e Fernanda aceitou. Dinheiro vivo, como ela nunca havia visto no trabalho de lavagem de roupa. Percebeu que tinha um pequeno tesouro nas mãos, e era preciso cautela. Se alguém mais soubesse do que estava escondido ela estaria perdida. A começar pelo marido.

Pediu sigilo ao ourives e saiu, mal cabendo em si de contentamento. Ao invés de passar na venda e deixar o pessoal da cachaça boquiaberto, comprou uma besteirinha qualquer e voltou para casa.

A partir daí começou a arquitetar um plano. Seria empresária de lavadeiras, e se tornaria assim a maior lavadeira do Rio das Velhas. Criou uma cooperativa de lavadeiras, onde ela era a chefe e quem negociava os preços com as clientes. Ficava com uma pequena comissão, mas não precisaria mais dar duro na lavagem. Foi assim que o trabalhismo chegou para as lavadeiras, antes desorganizadas e mal remuneradas. Fernanda estabeleceu regras. Haveria dias de folga, todas ajudavam na doença, não haveria concorrência entre elas. A cooperativa prosperou. Todo mundo queria fazer parte agora. Os preços foram reajustados pela inflação, mais um adicional de produtividade, mais um adicional de periculosidade. Fernanda começou o embrião de um verdadeiro sindicato. Já tinha gente propondo que ela se candidatasse à Câmara Municipal para defender a classe.

Ela se tornou não apenas a maior lavadeira, mas a rainha das lavadeiras do Rio das Velhas. E aquele bendito ouro rendeu, rendeu. Hoje Fernanda é dona, também, do ponto de jogo do bicho."

(Do livro Maria Pia et cetera, em nossa Livraria Virtual)
24 de janeiro de 2020

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2 Comments:

  1. Anônimo said...
    ...e aposto que até já nao dispensa uns oculos escuros, mesmo quando é de noite.
    Delicioso esse conto! Simplesmente delicioso.
    PS: a personagem poderia ser lavadeira no Rio Kuanza, e ate talvez achar umas pedrinhas brilhantes ao inves de douradas, e até alternativamente, se chamar Isabelinha...mas...dos Anjos, só para nao confundir com alguma realidade, há pouco tempo considerada ficção, dos dias de hoje ;-)
    Vececom said...
    Obrigado por seu comentário. Vê-se que chegamos até ao continente africano. Saravá.

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