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  ERA UM SONHO. Só podia ser um sonho, ou, então, um destes universos paralelos de que falam os entendidos. De repente, eu me vi numa casa de fazenda muito antiga. Daquelas fazendas coloniais que existem em Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. Casa enorme. Eu subi por uma pequena escada de pedra, que dava diretamente na varanda frontal. Havia um banco de madeira encostado à parede, e uma proteção também de madeira, com umas volutas.

  Uma única porta dava acesso a uma sala, deveria ser a sala de visitas ou uma sala de entrada, não sei. Havia uma porta do lado esquerdo, que dava para uma outra sala ampla, com janelas que se abriam para o curral em frente e para o lado, de onde se avistava os pastos, e um paiol de milho logo embaixo. Agora me lembro melhor, pela disposição das cadeiras de palhinha, esta deveria ser a sala de visitas. Quem será que chega até aqui, aparentemente tão longe de outras casas, para visitar?

  Estou em outra época, só pode ser isso. Numa fazenda de café. Percebo isso, porque logo abaixo da casa existe um terreiro enorme, onde o café fica secando ao sol. Continuo andando cautelosamente pela casa, como se pudessem me ouvir ou como se fosse surpreender alguém. Ao longo de um corredor largo, existem quartos. Um pequeno escritório, com livros e canetas, muitos papeis espalhados, revelam que o senhor faz daqui as suas contas, recebe os empregados e faz pagamentos. Sei disso, porque existe um cofre enorme junto à parede.

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  Há uma sala interna, mais ampla do que a da frente, indo de um lado a outro do prédio. Muitas janelas. De um lado, dá para um pastinho lateral, que também tem canteiros com flores. Aqui a senhora deve cultivar suas roseiras, hortênsias e girassóis. Vejo muitos.

  Se este é um sonho, ele é recorrente. Parece-me que, ao mesmo tempo, vejo várias épocas numa só. Percebo isso porque as meninas da casa estão com idades diferentes, em cada vez que fixo o olhar em algum cômodo. Começaram pequenas, correndo em bandos. Depois, as vejo chegando do colégio interno, com baús de roupas, e risos, muitos risos da alegria de voltarem para casa.

  Hoje, por exemplo, vi uma delas casando-se na sala de visitas, toda enfeitada. Pouca gente de fora presente, todos muito bem vestidos, os homens com o chapéu às mãos. As mulheres também de chapéu. O noivo, empertigado, suando muito, deveria estar nervoso de estar assim na casa da fazenda da família de sua noiva. Depois, passaram todos à sala interna onde estava posta uma mesa para muitas pessoas, louça inglesa e copos de cristal Saint-Louis. Em seguida, entram as empregadas com bandejas repletas de carnes, farofa e arroz de forno. Engraçado, eles não comem verduras. Será que não era chique? Eu, embora vendo ou sonhando com tudo aquilo, não perdia a noção de que eu pertencia a uma outra época. Aquilo era como um filme antigo.

  Mas, de repente, eu começo a ficar muito tenso. Sinto que está para acontecer alguma coisa da qual não quero participar. Ou será que estou tendo apenas um mau presságio? Uma porta abre-se, de súbito, e entra um homem de botas de cano alto, bigodes pretos e chapelão. Observo que ele deveria seguir o costume de tirar o chapéu ao entrar em casa. Há gritos de surpresa na sala onde a família está reunida. Correria. Mais gritos. Ouço qualquer coisa acontecendo no corredor, uma luta, talvez o senhor ou um filho da família tentando barrar o intruso. Ninguém está autorizado a entrar na parte reservada à família, sem ser convidado. Ouço um tiro, mais gritos. O senhor entra cambaleante e a senhora corre a ampará-lo. Ele foi ferido. Então era isso. O homem do chapelão havia entrado na casa para um acerto de contas, pensei eu. Correm as empregadas, com bacias e remédios caseiros. Alguém sussurra que será preciso chamar um médico. As meninas choram apavoradas. E onde estará o homem de chapelão? Olho pela janela e vejo que ele saiu a galope em sua montaria. Estará fugindo para algum refúgio, certamente. Alguns empregados chegam assustados, pressurosos, todos com ar de espanto. O senhor respira com dificuldade e aponta qualquer coisa, assim para o meu lado. Eu não consigo desviar o olhar da cena, sou um observador privilegiado. Ninguém se dá conta da minha presença. Muito estranho. Então, eu não faço parte daquele grupo. Deve ser um sonho mesmo.

  O senhor quer que chamem o delegado. As pessoas fazem cara de dúvida. A senhora parece conhecer muito bem o homem de chapelão, porque murmura o tempo todo: “Não precisava fazer isso”. Agora, olhando bem para as meninas, que choram no canto, muito assustadas, acho que o homem de chapelão deveria ser conhecido delas também.

  Agora entendi, e nem sei como. Parece-me que consigo ver o passado e o futuro ao mesmo tempo. Muito confuso. O homem do chapelão era um cunhado da senhora. Marido de sua irmã. E já sei que ali há uma disputa por herança, ou por dinheiro. Mas não. É uma disputa política. Os dois cunhados estão em lados opostos, pelo que percebo, não sei como. São adversários. A política mata. Mas, certamente, por detrás disso tudo, há uma disputa por herança. De quem seria esta fazenda, antes destas pessoas morarem aqui? Do pai ou do avô da senhora?

  Depois, muda rapidamente de cena, aquela mesma sala parece agora estar quase vazia de móveis, as pessoas são mais jovens, parece outra geração, e estão conversando em pé, no meio da sala. Uma das moças diz, referindo-se à casa, que ela é muito confortável, apesar de antiga. Foi de seu bisavô Umbelino. Diz que só há um pequeno problema, pelo que contam os parentes. Ali habita um fantasma, que veste terno branco e sapatos amarelos. Todos sorriem, parecem deliciados com a história.

  Eu olho para baixo e vejo que estou de terno branco e sapatos amarelos. O fantasma sou eu.

  (do livro Maria Pia et cetera, Carlos G. Vieira, em nossa Livraria Virtual)



(17 de fevereiro de 2021 - Quarta-feira de Cinzas, Ano II da Covid-19)

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