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Digam de mim o que quiserem (pois não ignoro como a Loucura é difamada todos os dias, mesmo pelos que são os mais loucos), sou eu, no entanto, somente eu, por minhas influências divinas, que espalho a alegria sobre os deuses e sobre os homens.”

(Erasmo de Roterdã, “O Elogio da Loucura”)


PRIMEIRO CHEGARAM DOIS HOMENS, depois mais três, e logo somaram uns vinte com aspecto claramente indígena, chapéu na cabeça e sandália, alguns adereços. Fizeram um círculo bem na Plaza de la Constitución, mais conhecida como Zócalo, onde tremula uma enorme bandeira mexicana, viraram-se de costas para uma pequena multidão de curiosos, turistas em sua maioria, e abaixaram as calças, deixando ver a derrière esbranquiçada e lisa. Um protesto silencioso. Nada foi dito.

Ouviram-se vários “Oh, my God” das americanas, que correram a fotografar aquela cena insólita. Alguns guardas em uniforme azul-marinho vieram lá do lado da Catedral, outros do Monte de Piedad, parecia a todos que eles iriam impedir aquela cena, mas, solidários, limitaram-se a manter a pequena multidão afastada, porque já tinha gente querendo ver mais de perto, e os manifestantes estavam com cara de poucos amigos.

A qualquer momento, deveriam chegar as equipes de televisão e fotógrafos de jornais. A praça começou a encher. Veio gente de dentro da Catedral, veio gente que visitava as ruínas, veio gente da Avenida Francisco Madero, veio gente dos escritórios e, mesmo não sendo hora de almuerzo, veio gente dos restaurantes. A curiosidade era enorme. Vinte homens de bunda de fora. Isto dava chamada até na CNN. Em dado momento, passou uma pequena banda tocando Las Mañanitas, e os homens impassíveis, um pouco curvados, para que todos pudessem ver, sem distinção, e de qualquer ângulo, o que desejavam mostrar. Nenhum cartaz, nenhum discurso inflamado, nenhuma faixa. A multidão foi aumentando e os poucos guardas de azul-marinho pediram reforços. Alguém chegou a pensar no exército. Uma senhora veio e estendeu um lenço vermelho no chão, sugerindo alguma revolta de uma ala da esquerda contra o PRI. Mas os homens pareciam indiferentes, camponeses, gente do interior, trabalhadores da terra. Não pareciam interessados nas coisas da política.

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Então, apareceu alguém que vinha da parte do prefeito. Não era permitido aquele tipo de espetáculo no Zócalo, sem que houvesse um pedido de permissão, com quatro semanas de antecedência. E mesmo se o pedido houvesse sido feito, não teria sido concedido, foi logo comentando ao chegar, de terno e gravata, suando bastante, bigodes aparados, anel na mão esquerda, denotando ser um ingeniero. “Quem é o chefe?”, quis saber. Os homens permaneceram mudos e na mesma posição. A bem-dizer, nem todos. Um estava coçando o traseiro acintosamente. Deveria fazer parte do enredo.

Se não tem chefe, quem é o encarregado?”, quis novamente saber a autoridade municipal. Alguém do público mais próximo deu um palpite, porque a esta altura o Zócalo já estava quase todo tomado de curiosos, alguns turistas perguntavam em castelhano bem sofrível se era um show que estava ocorrendo ali, e todos os circunstantes se entreolhavam sem saber explicar. Respondiam chiste, e os turistas ficavam na mesma. Mas este alguém mais próximo da autoridade respondeu que havia o motorista do caminhão que os havia trazido até ali, sabe Deus de onde. E apontou para um rotundo traseiro, meio amassado é verdade, talvez de muitas horas sentado na boleia de um caminhão.

A autoridade, então, dirigiu-se ao tal motorista, que olhava fixamente em direção à Catedral, e perguntou-lhe se havia uma autorização. Ouviu-se, pela primeira vez, uma voz rouca dizendo que os mexicas, os toltecas e os astecas, não careciam de pedir autorização para pisar no solo sagrado do Templo Mayor. Fez-se um silêncio. A autoridade raciocinou que não era ninguém de partido político da oposição, nem do Movimento Progressista, nem do Partido Ação Nacional. Então, querem o quê?

Queremos terra para plantar”, respondeu um outro.

O representante do prefeito respirou aliviado. Isto seria assunto para a reforma agrária ou para o Ministério da Agricultura, nunca para a prefeitura. Já ia dando meia-volta para se retirar, quando um dos guardas de uniforme azul-marinho perguntou-lhe o que fazer, então, com aqueles loucos. “Chamem a polícia, ou um sanatório para apanhá-los.” O guarda argumentou que a polícia já estava ali representada, como podia ver a excelência, mas estava com uma força bastante reduzida e sem condições de executar a limpeza da praça já repleta. Praça, aliás, que já estava sendo ocupada por várias carrocinhas com bebidas, cachorro-quente, tacos, burritos e tortilhas. Duas bandinhas executavam músicas típicas, e um grupo de Mariachis já havia se deslocado da Plaza Garibaldi para o Zócalo e prometia entrar em ação imediatamente, em apoio aos manifestantes.

"Chamem, então, a turma do sanatório para levá-los daqui. Ou melhor, chamem alguém do Palácio do Governo para estudar o caso deles." E desapareceu rapidamente.

Um membro de uma ONG partiu para negociar com os manifestantes.

Poderiam dizer com quem gostariam de conversar?”

Com o Presidente da República.”

"Impossível", disse-lhes o jovem da ONG.

Então com o cardeal”, que devia estar ali perto.

"Tudo bem", disse uma outra jovem, também da ONG, que já se adiantara e formava uma pequena comissão de negociadores.

"Enquanto isso, não levem a mal, não poderiam subir as calças?"

"De forma nenhuma", disse-lhes um velho. "Não arredamos pé daqui enquanto não tivermos uma resposta dos espanhóis."

"Espanhóis?" Perguntou, surpresa, a jovem. "Que espanhóis?"

"Os usurpadores, aqueles que tomaram o México de seus legítimos donos."

"Meu Deus, señor, isto aconteceu há 500 anos."

"Não para nós", respondeu o velho. "Viemos ao Templo Mayor para exigir a nossa terra de volta. Se o cardeal não nos atender, queremos falar com o embaixador da Espanha."

"Calma", respondeu um terceiro jovem, parece que da Universidade do México, que também se juntara aos da ONG. "Vamos em busca do cardeal."

O cardeal recusou-se a recebê-los. Mandou o secretário da arquidiocese para parlamentar com os jovens. O sol forte já havia feito algum estrago nos traseiros, desacostumados ao ar livre. Estavam todos avermelhados, o que chocava bastante um grupo de turistas alemãs em visita à Catedral Metropolitana da Cidade do México. Parece que eram monjas de um mosteiro fundado na Idade Média, apurou um repórter. O secretário explicou que o cardeal não tinha nada com isto, isto era assunto do poder público.

Os jovens voltaram um pouco desanimados, e os homens da manifestação já estavam ficando inquietos, um havia sussurrado para um circunstante se havia banheiro público ali perto. Responderam que no Museu tinha um. O jeito, então, era voltarem-se para a polícia mesmo. Ou para o exército. Alguém haveria de acabar com aquele inusitado atentado ao pudor e a paz do Zócalo. Resolveram apelar para o bom senso dos homens despidos. Os jovens são sempre otimistas. A jovem sugeriu retomarem as negociações. A multidão no Zócalo, já meia cansada, começou a debandar. Apenas um grupo de turistas americanas permanecia firme, todas elas de óculos escuros, copo de refrigerante com canudinho em uma das mãos, e um taco na outra, observando bem aquelas nádegas avermelhadas e trocando observações entre si. Houve até um poll para elegerem a melhor bunda.

Os jovens da ONG auxiliados por outros jovens aproximaram-se dos homens e perguntaram, para dar partida a uma nova rodada de negociações. O aluno da Universidade do México já chamava aquilo de Cúpula do Zócalo. Perguntaram onde queriam os homens terras para plantar. O velho respondeu de pronto: "Chapultepec."

Estão loucos?” Responderam os jovens. "O parque é um patrimônio da Cidade do México, com não sei quantas mil visitas por dia, e além disso está muito próximo de Polanco, um bairro chique. Tem o Museo Nacional de Antropologia. Vão querer plantar nele também? Escolham outro local."

Então”, respondeu o velho, não sem antes conferenciar com o menos velho, “queremos terras em Coyoacán, porque foi lá que Hernán Cortés se fixou antes de tomar a Cidade do México.”

"Loucos!" Responderam os jovens em uníssono.

"Vão querer plantar na Casa de Frida Kahlo também? Ou no Museu do Trotsky? Escolham outro lugar, alguma coisa razoável, para começarmos alguma negociação com o governo."

Então”, respondeu novamente o velho, não sem antes conferenciar com quatro ou cinco bundas adjacentes, “queremos terras em Teotihuacán.”

"Dios", responderam os jovens na mesma hora, "vocês enlouqueceram de vez. Lá está um dos mais importantes sítios arqueológicos do México, com as pirâmides do Sol e da Lua. Vão querer acabar com o turismo também? Lá não tem como plantar nada."

A esta hora, sol se pondo, o Zócalo foi se esvaziando, cada um procurando um ponto de descanso ou de retorno para casa. Só os homens, extenuados, permaneciam firmes em sua manifestação. Nem a polícia estava preocupada, nem as turistas americanas que já haviam debandado há muito tempo, nem os Mariachis, nem o cardeal, só os jovens, estes eternos idealistas e lutadores pela justiça, procuravam uma saída honrosa para os homens. Conferenciaram entre eles por uns dez minutos e encontraram uma solução boa para os dois lados, digamos assim.

Propuseram que os homens encontrassem terras para plantar no Texas ou na Califórnia. Os jovens arranjariam um meio de atravessarem a fronteira.

Lá também é terra de ustedes”, disseram. Os homens aceitaram, talvez mais por cansaço do que por loucura.

(Do livro Maria Pia et cetera, Carlos G. Vieira)

( Viva Mexico! 1º de fevereiro de 2021, Ano II da Covid-19)


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