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La vida es difícil. Para estar en paz con uno mismo hay que decir la verdad. Para estar en paz con el prójimo hay que mentir.” (Adolfo Bioy Casares)

O DELEGADO PASSOU APRESSADO pela sala de depoimentos, como sempre fazia ao chegar, deu uma rápida olhada nos depoentes que aguardavam o escrivão, e já estava indo em direção ao corredor, quando parou de repente e voltou-se. Na cadeira do canto estava uma moça jovem, descalça, vestido todo sujo, com o olhar perdido. Poderia ser mais uma destas moradoras de rua que entram na delegacia para pedir proteção contra o mundo inteiro. Acontecia todo dia. Mas não aquela. Ele a conhecia de algum lugar. Fixou o olhar no semblante apático e sujo da moça e se lembrou. Ela tinha sido sua colega no Colégio Santo Agostinho da Barra.
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     Dirigiu-se a ela e perguntou: “Você não estudou no Santo Agostinho?”
     A moça saiu do torpor em que se encontrava, olhou para ele com olhar vazio, e respondeu: “Acho que sim...”. O delegado pediu que ela entrasse em sua sala. O aspecto dela, de pé, era horrível. Não era propriamente a de uma moradora de rua, porque o vestido, notava-se, era de boa qualidade. Talvez tivesse sido vítima de um acidente de carro na Avenida Brasil. Mas não apresentava ferimentos graves, apenas algumas escoriações. Pediu a ficha dela. Quem havia trazido? Uma patrulha da Polícia Militar, que a abordou na Praça das Nações, em Bonsucesso. Não souberam informar nada, ela parecia ter perdido a memória, falava coisas sem sentido.
     O nome dela era Catarina, agora ele se lembrava. Foram da mesma sala no terceiro ano. O delegado sentou-se e procurou acalmá-la, muito embora ela não apresentasse nenhum nervosismo. Apenas estava totalmente apática.
     “Catarina, eu sou o Carlos Antônio, fui seu colega, lembra-se agora?”
     “Acho que sim...”, foi a única resposta.
     “Catarina, você tem o telefone de algum parente, seu marido, mãe, alguém que possamos avisar que você está aqui?”
     “Não me lembro de cabeça...”
     “Mas pode me dizer o nome de um deles, a gente tenta achar o telefone.”
     “Não me lembro de cabeça...”
     “OK, Catarina, sem problemas. Pode me dizer, então, o que aconteceu com você? Consta aqui que a PM a encontrou vagando em Bonsucesso, gesticulando muito, e dando uns gritos. O que aconteceu?”
     “Eu fui jogada no valão.”
     “No valão de Ramos?”
     “Não, no valão de Bonsucesso.”
     “Mas, Catarina, não tem valão em Bonsucesso, você deve ter confundido, é o valão de Ramos.”
     “Não, é o valão de Bonsucesso.”
     “OK, a gente vê isto depois, você vinha de carro pela Linha Amarela e caiu no valão?”
     “Não, eu estava na Barra. É lá que eu moro.”
     “Catarina, desculpe, eu não estou entendendo. Você diz que mora na Barra e foi jogada num valão. Foi algum sequestro?”
     “Não, fui arrastada.”
     “Mas arrastada como? Foi colocada dentro de um porta-malas e jogada no valão de Ramos?”
     “Não, no valão de Bonsucesso.”
     “OK, Catarina, o valão a perícia pode determinar depois. Mas o que eu quero saber é como você foi arrastada da Barra até um valão, qualquer que ele seja, e depois apareceu na Praça das Nações?”
     “Eu estava fazendo a minha caminhada, ao lado do meu condomínio, e de repente uma força me arrastou.”
     “Foi arrastada à força, Catarina? Por quem?”
     “Você não entende, uma força que veio não sei de onde, me arrastou e me jogou no valão.”
     “Catarina, me desculpe. Esta história está muito esquisita. Como alguém que estava caminhando na Barra, de vestido, de repente é jogada no valão de Ramos, digo, de Bonsucesso?”
     “Eu também não sei.”
     “E daí? Você se lembra como você saiu deste valão?”
     “Eu comecei a gritar, mas parecia que ninguém me ouvia. Perdi os sapatos, fiquei toda suja no valão, um mau cheiro insuportável. Pensei que fosse morrer ou que já estivesse morta. Acho que agarrei alguma coisa, talvez um galho de árvore, e subi. Tudo estava cinza em volta de mim. Eu mal podia distinguir as casas. Eram só casas em volta. Mas não havia ninguém, parecia que todas estavam vazias.”
     “Dava para ver alguma placa, alguma localização, como você sabia que estava em Bonsucesso?”
     “Eu não sei, eu não conheço Bonsucesso. Mas um nome de rua eu vi. Avenida Paris. Depois cheguei numa espécie de praça, que foi onde me recolheram. Aí os soldados me disseram que eu estava em Bonsucesso. Então conclui que eu tinha sido arrastada para o valão de Bonsucesso.”
     “Catarina, tente se lembrar. Você não estava indo de carro com alguém para os lados da Linha Vermelha? Tente se lembrar. Talvez ontem, ou antes de ontem.”
     “Não. Eu estava caminhando na Barra.”
     “Mas olha bem, Catarina, eu também moro na Barra e venho todo dia trabalhar aqui. É longe. Não dá para alguém simplesmente te arrastar e jogar no valão de Ramos, digo, de Bonsucesso. Tem que ter acontecido alguma coisa neste trajeto. Mas, vamos lá, que hoje você deu sorte. Eu estou com muita paciência, e quero ajudar. Descreve para mim esta força que te arrastou. Tinha dois braços?”
     “Você não entende. Era uma força irresistível, invisível, na hora eu só vi que os prédios do meu lado direito pareciam distorcidos, como se estivessem se mexendo. Eu senti um puxão pelas pernas, uma coisa horrível, parecia que eu caía num poço, e fui arrastada assim mesmo pelo ar, raspei em algumas coisas que me machucaram o braço e as pernas, mas foi só isso. E a minha cabeça parecia que ia explodir, deu um branco. Quando você me chamou de Catarina eu me lembrei que este era o meu nome, mas só naquela hora. Me lembrei depois que eu estava na Barra, e que eu moro na Barra, num condomínio, mas não sei precisar qual. Eu fui engolida por um torvelinho e jogada no valão de Bonsucesso. Como eu sei que era o valão? Uma voz me disse que este era o meu lugar, o lugar que eu merecia estar, o valão de Bonsucesso.”
     O delegado respirou fundo, mandou trazer dois cafezinhos, pediu licença, e foi conversar com um detetive antigo morador da região. Perguntou se ele conhecia algum valão de Bonsucesso. O detetive disse que tinha ouvido os pais contarem que na época do Engenho da Pedra, no início do século XX, realmente existia algo parecido com um valão. Mas, depois disso, só conheceu o valão de Ramos.
Quando o delegado voltou à sua sala, Catarina tinha desaparecido. Ainda procurou nos banheiros, no pátio da delegacia, perguntou se ela tinha saído pela porta de entrada, ninguém deu notícia. Catarina evadiu-se, na linguagem policial. O delegado encerrou aquele caso que nem havia começado, mas passou o dia pensando nele. O que teria acontecido com aquela menina Catarina, coleguinha do Santo Agostinho?
     Chegando à noite em casa, depois do jantar, pensou em telefonar para um amigo, também colega de colégio. A figura estranha de Catarina não saía de sua cabeça. Contou o caso para a sua mulher, coisa que raramente fazia, e ela ficou muito impressionada. Mas quem é esta Catarina? Ela deve morar por aqui perto da gente. O delegado decidiu-se. “Vou ligar para o Bernardo, que foi nosso colega, vou ver se ele sabe por onde ela anda”.
     Ligou e contou, mais ou menos o acontecido naquela manhã. Bernardo ouviu, e disse apenas isso: “Carlos, é impossível. Esta Catarina, que foi nossa colega, morreu há seis meses. Eu fui à missa de sétimo dia.”

(Do livro Maria Pia et cetera, Carlos G. Vieira, 2016)
30 de março de 2020 - ano I da Covid-19

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2 Comments:

  1. Paulo said...
    Gostei muito, mestre Gentil.

    Abraços (vim por causa do pão, mas a Catarina me pegou)

    Paulo Morin
    vececo said...
    Que bom que você apareceu por aqui. Vou arranjar, agora, uma rosca mineira de Santa Luzia.

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