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ERA UMA CIDADE TÍPICA DO INTERIOR de Minas. Com aqueles bancos no Largo, oferta das Casas Pernambucanas, Armazém Dias & Cia., Papelaria Verde Que Te Quero Verde, Selaria Montana, e outros cujos nomes foram se apagando com o tempo. Cidade pacata. Criminalidade, nenhuma. Um cinema com sessões vespertinas às 18 horas, para não concorrer com a novela. Footing aos domingos no jardim da Matriz. Era pacata, até que aconteceu o acontecido.

Não se sabe de onde, nem por que razão, apareceu um indiozinho quase pelado em plena segunda-feira, com apenas um arco e flechas nas costas, caminhando calmamente pelo córrego da Jacutinga que banha a parte mais baixa da cidade. Primeiro, pensou-se que era algum caçador de uma das fazendas e que vinha no rastro de uma paca. Estranharam um pouco a tanga, mas se ele estivesse vindo pelo córrego, desde lá para os lados da nascente, fazia sentido, para não molhar as roupas. Mas quando um garoto quis perguntar o quê ele caçava e ele respondeu numa língua estranha, alguém desconfiou que havia alguma coisa errada. Paca, certamente não era. O córrego só dava lambari e não precisava nem de arco, nem flecha, para pescar lambari. O menino que primeiro o avistou correu até em casa e contou para a mãe, que contou para vizinha, que contou para outra, e outra, e outra e logo um bando de gente começou a se postar às margens do córrego, enquanto a estranha figura avançava cautelosamente, olhando para um lado e para o outro.
Aí um homem gritou: “Ô menino, tá caçando o quê?”. O menino, ainda não se sabia que era um indiozinho, olhou para o homem com ar interrogativo, grunhiu alguma coisa e engatilhou – maneira de dizer – uma flecha no arco. O povo, olhando aquela cena, não conseguia entender nada. Uma senhora se adiantou e disse: “Ô meu filho, assim pelado você vai se constipar”. O tempo realmente estava mais para frio e todo mundo andava agasalhado, como se dizia.

O menino parou dentro do córrego, e falou alguma coisa novamente numa língua muito estranha. A esta altura, numa cidade tão pacata, a notícia daquele pequeno ajuntamento já havia chegado até a prefeitura. Então, pediram ao único guarda municipal que fosse dar uma olhada. Deveria ser algum menino de fazenda que perdeu o rumo de casa. O guarda foi, e, com muito jeito, tentou falar com o menino, mas este não entendia nada. O guarda achou que seu aspecto era mais para um indiozinho, daqueles que a gente vê em revista, do que para um menino de fazenda. Primeiro, pelo cabelo liso escorrido, a tês morena, descalço, e a vestimenta era uma tanga trançada com cipó, coisa primitiva, mesmo para aquele município mineiro, que vivia quase que só das aposentadorias públicas e repasses de verba. A notícia foi correndo de boca em boca: “Apareceu um indiozinho no Jacutinga”, e chegou até a escola municipal Professor Adalberto de Oliveira. Os alunos, que ficaram sabendo de tudo pelo bedel, pediram que suspendessem as aulas para todos irem conferir aquele raro acontecimento na cidade. O professor Orlando, de geografia, profundo conhecedor de antropologia, conforme declarava sempre no primeiro dia de aula, se propôs a desvendar o mistério, porque tinha uns rudimentos de língua indígena aprendido numa expedição feita ao Amazonas, quando ainda era estudante. Se fosse impostor, ele saberia dizer.

Como ninguém fazia nada para desvendar aquele mistério, dona Marieta, que morava perto do Jacutinga, mãe de cinco filhos e experiente no trato com gente miúda, com muito jeito e gesticulando, convidou o jovem visitante da cidade a entrar em sua casa e tomar um café com broa de milho. Além do menino desconhecido, outras vizinhas, apreciadoras da broa de milho de dona Marieta, se convidaram e formaram uma roda em volta da mesa da cozinha. Dona Marieta fez questão de dizer que ele iria experimentar o melhor café daquela região de Minas. O jovem, espantado, só aceitou a broa de milho, e por sinal comeu várias, o que demonstrava que estava mesmo com fome. As vizinhas trataram logo de acabar com o café.

Tentaram falar com vários sotaques e entonações, mas o menino parecia não entender nada mesmo. Mudo viram que ele não era, porque dizia umas palavras esquisitas. Pela aparência, olhos amendoados, cabelo liso e preto, de fato parecia ser indígena. Mas ninguém nunca ouvira falar da existência de alguma aldeia nas proximidades, e nem na divisa com Goiás ou com São Paulo. Então, de onde teria surgido este menino?

Os seus apetrechos, arco e flecha, eram muito bem feitos, e trançados com uma palha pintada de várias cores. O arco ainda tinha dependurado na ponta uma pena amarela. Um índio, ou um artista de televisão, já não havia a menor dúvida. Com a chegada do grupo de alunos da escola e do professor Orlando, a coisa tomou um ar mais científico, investigativo. Primeiro, o professor quis saber pormenorizadamente do relato do menino que primeiro avistou a figura do desconhecido. Tirou um caderno da mochila e anotou alguns detalhes. Depois, dirigiu-se à casa de dona Marieta, para entrevistar o jovem visitante. Foi imediatamente colocado à mesa da cozinha, onde o jovem comia a última broa de milho. Ajeitou os óculos e disse: “Abápe endé?”. Queria saber quem era ele, em guarani. O menino olhou sem demonstrar surpresa e respondeu: “Ixé pirá”. O professor exultou. Não entendeu nada, mas tinha certeza de que se tratava de um índio, e falando em tupi-guarani. Virou-se para as mulheres, e mais um monte de gente que se aglomerava na porta e nas janelas da casa e proclamou como um cirurgião: “É índio”. Todo mundo ficou boquiaberto. De onde teria surgido este indiozinho? Um menino da escola sugeriu que ele poderia ter saltado de paraquedas, foi um riso geral.

Dona Marieta, enquanto isso, foi lá dentro e voltou com uma blusa e um calção de um de seus filhos que regulava com o corpo do índio, segundo ela. O menino não poderia ficar daquele jeito, naquela friagem. O indiozinho recusou a oferta. O professor concordou, não era apropriado a um habitante da floresta vestir-se daquele jeito. Alguém, então, disse: “Mas professor, mal me pergunte, qual floresta?”. O professor coçou o rosto, olhou para o indiozinho e respondeu “É, falta a gente descobrir isso”.

O indiozinho fez com a cabeça um agradecimento pela hospitalidade, encarou aquela turba toda, e quis retornar ao córrego, mas foi impedido pelo guarda municipal. “Não senhor, agora queremos deslindar este mistério, meu rapaz.” Foram precisos uns cinco para segurar o índio. Ele virou fera, só falando palavras feias, em tupi-guarani naturalmente, ainda bem que ninguém entendeu. Então, convenceram-no a ir até o Largo e ter uma conversa com o prefeito. Este, a esta hora já havia convocado o presidente da câmara, e alguns secretários para ajudarem na tarefa de clarear aquele mistério. Pediu ao professor que servisse como intérprete, não obstante este ter explicado que o tupi-guarani tem muitos dialetos e seria impossível entender tudo.

O indiozinho não parecia assustado. Estava mais para curioso, a tudo olhando e sendo olhado. As meninas da escola começaram a dizer que ele era muito bem-posto, poderia ser um tipo Mogli. Entrando na sala de audiências da prefeitura, foi solenemente cumprimentado pelo prefeito, que apresentou o presidente da câmara e o promotor, este chamado às pressas. Quis saber de onde ele teria vindo. O professor, com algumas palavras em tupi-guarani e muitos gestos, traduziu a indagação do prefeito. O indiozinho parece que captou o que queria saber o ilustre munícipe e respondeu: “Ka'a”.

O professor sorriu. “Ele diz que veio da floresta”. “Mas que floresta, professor? Aqui só temos pasto e uns capões muito esmirradinhos.” O professor concordou e tentou saber mais um pouco. Não adiantou, a conversa não andava, e o indiozinho começou a ficar impaciente. Então, o professor pediu um tempo para conferenciar com o prefeito. Sugeriu que chamassem a Funai. Ninguém melhor do que eles para decifrar aquele enigma. O prefeito, o presidente da câmara, o promotor e o secretariado presente, todos concordaram. O professor disse que ele cuidaria do indiozinho até a chegada de alguém da Funai.

A Funai resolveu, após muitos dias, que mandaria um pajé para conversar com o indiozinho. "Pajé?", perguntaram todos. É, pajé. Mas um pajé muito experiente, muito jeitoso, que dominava vários dialetos e várias técnicas de pajelança. Bom, aí ninguém entendeu mais nada. Mas parece que o indiozinho estava se dando muito bem com aquela vida farta, cercado de mordomias, e carinhos de toda ordem. Já se tornara figura conhecida na cidade, e, quando ia ao Largo, era saudado efusivamente pelas adolescentes do footing. Quiseram até dar uma festa em homenagem a ele, todo mundo seminu, e foram desencorajadas pelas senhoras da sociedade. Não ficava bem.

Finalmente chegou na cidade o tal pajé, com cocar na cabeça e tudo. Maior sensação na rodoviária. Professor Orlando foi recebê-lo, e levou-o imediatamente para se encontrar com o indiozinho, já agora deitado confortavelmente numa rede na varanda da casa do professor, devidamente agasalhado, porque já fazia um frio danado. O pajé foi chegando e falando umas coisas estranhas, tendo uns tiques nervosos, puxou da mochila uns atabaques, deu uns pulos antes de entrar na casa, e o indiozinho só olhando curioso. Deve ter pensado “Quem é esta figura?”.

O pajé, ao contrário das expectativas, não puxou nem um pouco de conversa com o índio. Pediu um tacho da casa, um pouco de carvão, acendeu um foguinho perto da varanda, colocou dentro umas folhas que pareciam de eucalipto, deixou fazer uma fumaça, e ficou soprando aquela fumaça para o lado do indiozinho. Em seguida, deu mais pulos, falou umas palavras esquisitas, e disse ao professor: “A casa está limpa. Pode mandar o menino embora”.

Não preciso nem dizer a cara que o professor, seus familiares e alguns curiosos fizeram.

“Como é que é, seu pajé? Mandar embora? Queremos saber de onde ele veio, uai.”

“Bom, isto não é com o meu departamento na Funai. A minha pajelança é para afastar os maus espíritos. O departamento de línguas é outro.”

Depois disso, a cidade resolveu adotar o indiozinho de uma vez. Dane-se de onde ele veio. Deram-lhe o nome de Curumim, foi admitido na escola, passou a namorar uma adolescente, e agora está pensando em fazer um concurso público. Já tem casa, comida e roupa lavada. O arco e flecha estão dependurados na sala de visitas da casa do professor, que pretende escrever um artigo antropológico sobre a aparição deste indiozinho no interior de Minas. Ninguém mais deu a menor importância a esta estranha e inexplicável aparição.

(Do livro Maria Pia et cetera, Carlos G. Vieira, 2016)
22 de abril de 2020, em homenagem aos povos do Brasil quando aqui chegou Pedro Álvares Cabral.

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