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Este é o segundo episódio, para usar um termo atual do streaming, de um folhetim escrito em quatro partes, tendo como cenário o antigo bairro do Rio Comprido, no Rio de Janeiro. Para ler a parte anterior, publicada aqui neste blog, clique em  Rio Comprido, 1939

A
GORA É A GUERRA NA EUROPA para valer. A Alemanha parece ser invencível, e nós todos sentimos uma ponta de orgulho.
Lá em casa quando se reúnem os amigos do meu pai, todos nascidos lá no Vaterland, só se fala nisso. Holanda, Bélgica, França, tudo sob domínio alemão. Faltam os ingleses teimosos, mas a hora deles vai chegar, meu pai me disse. O Führer fez uma coisa incompreensível. Deixou que os ingleses da Força Expedicionária voltassem para casa em Dunquerque. Acho que é aquela história de que somos primos, o Kaiser é meio inglês, sei lá. Mas a coisa esquentou muito e aqui no Rio de Janeiro a Polícia Política vem apertando o cerco sobre a comunidade alemã, principalmente aqueles que fazem parte da sessão brasileira do Partido Nazista Alemão. Lá em casa fomos instruídos a não comentar nada sobre a guerra.

   Como eu já contei, nossa primeira casa ficava na Rua Azevedo Lima, perto daquela do meu amigo Alexandrino, que muitos anos depois me disse assim de repente, voltando de um almoço na Rua do Ouvidor e quase ao atravessar a Rua Primeiro de Março, “Eu morei ali,” disse-me ele apontando para o casario da Travessa do Paço com Rua São José. Este Alexandrino, funcionário dos Correios a vida toda, sempre foi um menino inteligente e estudioso. E naquele dia ainda acrescentou: “Não apenas eu, mas minha mulher também, antes de nos conhecermos,” para minha total surpresa. Convenhamos.

Eu desde menino subia e descia a ladeira da Rua Azevedo Lima, várias vezes por dia, um cansaço. Depois meus pais resolveram que deveríamos nos mudar para a Rua Campos da Paz, perto da Paulo de Frontin. Edifício novo. Estranhei muito, porque ninguém que eu conhecia morava em edifício. Muito menos alemão. Todo mundo morava em casa, em geral na Rua Guaicurus, onde havia uma comunidade de famílias alemãs. Quando o dirigível Hindenburg visitou o Rio de Janeiro em 1936, alguém hasteou lá uma bandeira nazista. Foi um escândalo na comunidade alemã do bairro, porque mesmo os simpatizantes tratavam de dissimular, para não serem identificados pela Polícia Política.

Depois disso, fui morar na Rua Santa Alexandrina, esta sim uma ladeira. Perto do Hospital Espírita Pedro de Alcântara, para o qual fiz doações mais tarde de mobílias que não me serviam mais. O que me dava mais prazer era que, embora morasse no quarto andar, conseguia apanhar cacho de banana pelo muro. O edifício foi construído respeitando a topografia, e os apartamentos pareciam casas. Antes assim.

Hoje, aqueles que nasceram no Rio Comprido estão na diáspora. Expulsos pelo progresso e pela deterioração urbana. O máximo que faço é enviar a minha pequena contribuição todos os meses para a Ressurgir, que dá apoio a crianças carentes do bairro. Eu fui embora, depois meus pais se mudaram para o bairro do Flamengo, os amigos sumiram. A construção do Elevado Paulo de Frontin decretou a morte do mundo que conheci na infância. A queda do elevado em construção em 1971 foi a tragédia que faltava para nos afastar definitivamente. O que vou contar a seguir aconteceu antes de tudo isso.

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HOUVE UM TEMPO em que eu ia todo mês a um casarão da Avenida Paulo de Frontin para pagar nosso aluguel, e tenho saudades daquela época, com Dona Manuela uma senhora tão acolhedora, e de sua sobrinha Anna tão bonita, que se tornaria inesquecível. A mesma Anna saltitante que já contei. Os aluguéis da casa onde morávamos eram entregues pessoalmente por mim, ainda não havia esta história de pagar em banco. Em dinheiro vivo e olho no olho. Dona Manuela, viúva enérgica, não perdia tempo. Era eu tocar a campainha e ela providenciava a descida da sobrinha lá do segundo andar para uma conversa comigo. Aparentemente nunca se importaram pelo fato de sermos alemães, desde que pagássemos pontualmente, o que sempre fizemos. Com o começo da guerra na Europa havia muita desconfiança em relação a nós alemães, queríamos conquistar o mundo, destruir a civilização, estas coisas que eu ouvia meus pais comentarem. Eu, meio incomodado, queria só fazer o pagamento do aluguel e mais nada. Queria ir embora rápido, e D. Manuela não deixava. Uma vez, puxado pelo braço, cheguei a ir até a cozinha e experimentar uns docinhos da festa de aniversário que aconteceria mais tarde.

“Mas já vai, tão cedo? Anna, mostra para ele a sua coleção de selos.” E lá ficava eu a ver selos e mais selos, de países dos quais nunca ouvira falar. Coleção que o pai dela havia iniciado e que havia passado com mil recomendações. Mas a menina era bonita, tinha uma conversa agradável e isto ajudava a passar o tempo.

“Agora, você tem que ficar para o lanche.”

“Não senhora, muito obrigado, tenho que ir.”

“Então, vai comer só uma fatia do bolo de laranja.”

“Mais um pedacinho? Você não comeu nada. Acho até que está emagrecendo.”

E eu, sem graça, sabendo que não fazia parte daquele mundo. Anna sorria discretamente, um verdadeiro sorriso de Mona Lisa.

Foi assim que um dia de semana encontrei-me, pela primeira vez, com Anna no Largo do Rio Comprido. Eu apressado e ela me segurou delicadamente pelo ombro.

“Onde vai com esta pressa toda, Hans?”

Eu balbuciei qualquer coisa, tirei o cabelo que escorria pela testa, dei uma desculpa e já queria me despedir. Ela me olhou nos olhos e disse:

“Me faz companhia até a Rua Caetano Martins?”

O que eu poderia dizer?

“Claro que sim, Anna.”

E aí fiquei sabendo um pouco de sua vida, sem o olhar atento de dona Manuela por perto. Só ela falou, e eu sacudia a cabeça. Sentia-se como um passarinho preso na gaiola. Queria ter mais liberdade, conhecer outras pessoas, frequentar as casas. Se eu pensava que ela tinha saído sozinha? De jeito nenhum. Saíra com uma empregada e acompanhante, que ela deixara na igreja de Nossa Senhora das Dores, com a promessa de voltar logo.

“Hans, eu preciso de um pouco de liberdade. Toda a minha família me vigia o tempo todo. E você pode me ajudar.”

“Eu??? Ajudar como, Anna?”

“Muito simples. Oferecendo-se para me ensinar a falar alemão. Eu vou até a sua casa para ter aulas particulares, e nós saímos para nos divertir. Vamos até a Praça Saens Peña. Ou vamos até a Rádio Nacional. Eu queria tanto assistir a um programa de auditório. Eu tenho tanta vontade de conhecer o Paulo Gracindo. Você não tem namorada, ou tem?”

Juro que eu quis mentir, mas demorei muito a responder, e ela tomou como um não. Eu hoje estou convencido que o destino é isso. Nós não controlamos a nossa vida. As coisas vão acontecendo de roldão e nós somos levados por elas. Esta Anna que caminhava ao meu lado e falava sem parar não era a mesma menina tímida que eu encontrava na Paulo de Frontin. Estava solta, viva, e usava um perfume francês inebriante. Comecei a gostar desta história. Eu também nunca tinha ido à Rádio Nacional. A companhia dela, com um vestidinho rodado e sapato baixo com meias brancas, começou a mexer comigo. Senti que começava a ficar excitado, com um roçar de braços à medida que caminhávamos, ou quando ela pegava, naturalmente, na minha mão.

Ela era leitora de revistas que falavam dos artistas de rádio, com as quais eu não tinha a menor intimidade. Conhecia a vida inteira dos artistas. Era fã de uma cantora adolescente, chamada Emilinha Borba. Eu nem conhecia os nomes.

“Você sabia que o Vicente Celestino nasceu em Santa Tereza?”

“Não, não sabia. Pensei que ele fosse dono de bar, por uma música recente que ouvi no rádio e que o tempo inteiro falava de um ébrio.”

Ela fez um muxoxo, e falou assim mesmo: “Bobinho”. Aquele bobinho despertou minhas segundas intenções. Pensei em esquecer o que tinha de fazer na Rua Aristides Lobo e continuar ao lado de Anna a manhã inteira, sentindo aquele perfume de menina rica. Cheguei a pegar no braço dela, ao atravessar a rua, para impedir que tropeçasse. Ela continuava a falar sem parar, e meu pensamento mal podia acompanhá-la. Falou dos meses de verão em Petrópolis, das poucas e aborrecidas festas a que era obrigada a comparecer, sempre repleta de velhos. E daquela história que ela odiava de que era a única herdeira da família. Melhor não fosse e tivesse uma vida normal como as outras moças do Rio Comprido. Concordei.

“Hans, você vai ser a minha salvação. Foi Deus que te enviou.”

Gelei. Não queria ser a salvação de ninguém. Deixava isso para o pastor da nossa igreja. Mas se fosse esta a vontade de Deus, quem seria eu para contrariar. Então, fixei meus olhos azuis em Anna. Sabia bem do efeito que eles têm nestes trópicos de gente morena. E disse apenas: “Estou aqui para te ajudar, no que eu puder."

Nem é preciso dizer que dona Manuela aprovou, com amplo sorriso, a sugestão meio tímida de Anna, logo na semana seguinte, quando fui levar o pagamento do aluguel. Achou uma excelente ideia, uma oportunidade para Anna desenvolver-se em língua estrangeira, embora a preferência dela fosse mesmo pelo francês. O alemão era uma língua muita estranha e ainda despertava muitos temores. Mas se era o que Anna queria, estava bem. Pensou até em reservar a sala do piano para as aulas, o que foi rapidamente descartado.

“Melhor não, titia. O Hans disse que na casa dele existem livros e discos em alemão, e assim ficaria mais fácil. Não queremos dar trabalho, não é? Além disso ele também coleciona selos.”

“Então precisamos combinar o preço das aulas.”

Aí eu tive que intervir: “Dona Manuela, eu não sou propriamente professor, não fica bem cobrar. A Anna vai decidir, depois, se valeu a pena ou não. Podemos fazer assim?” Dona Manuela, via-se logo, não estava cabendo em si de satisfação. Até que enfim, pensava ela, alguma coisa está dando certo. Selado o acordo, Anna manteve aquele sorriso tímido de quem só quer se dedicar aos estudos e arranjar um bom marido. Nada mais, nada menos do que queria a astuta dona Manuela.

A chegada de Anna em nossa casa foi um alvoroço. Afinal, era por assim dizer a nossa senhoria que nos visitava. Minha mãe voltou a falar com um sotaque carregado de tão nervosa. Fiquei com pena, mas não podia dizer nada. Expliquei rapidamente que Anna queria conhecer um pouco da cultura alemã, que havia sido tão deturpada pela propaganda antinazista. Minha mãe acenou concordando e foi cuidar de outra coisa. Anna sorriu, sentou-se e expôs os planos para o dia.

“Hoje vamos passear na Rua do Matoso. No caminho você pode ir me ensinando umas palavras em alemão. Como se diz eu te amo?” Achei graça. Falou isto por falar, mas eu tive um calafrio. Ela propôs que fôssemos logo, despediu-se de minha mãe com um Auf Wiedersehen, puxou-me pelas mãos e logo estávamos na Paulo de Frontin. Eu perguntei se ela não tinha medo de ser vista assim com um menino alemão andando pela rua, talvez corressem a contar para dona Manuela. Ela riu e disse que a tia não acreditaria, e além do mais eu não era alemão, era o Hans, pessoa conhecida e estimada. Quase um primo. Continuava segurando em minha mão esquerda e aquilo me fazia muito bem. Tenho que confessar. Eu nunca antes tivera uma amiga. Nem sei se isto existia. Nós tínhamos amigos, naquela época. As meninas eram irmãs dos amigos, ou primas, e nós só as víamos de vez em quando. Nós estudávamos em colégios só para homens, como o São José no alto da Tijuca ou o São Bento, ou para meninas como o Santa Doroteia ou o Imaculada. As famílias sempre mantiveram uma distância respeitosa entre meninos e meninas. Namorar só para casar. É assim como se pensava no Rio de Janeiro daquela época, e muito mais em bairro tão conservador como o Rio Comprido. E eu agora arranjava uma amiga, quase prima. O que diriam meus amigos? Provavelmente que eu estava me tornando uma mulherzinha. Portanto não era só Anna que deveria se preocupar com os conhecidos na rua. Eu também. Se fôssemos vistos de mãos dadas seria a morte súbita. Tratei de soltar logo a mão quente daquela menina que estava se revelando tão interessante. Namorar para casar? Não havia pensado nisso e nem queria pensar tão cedo.

Achei melhor assumir o meu papel de professor. Virei-me para ela, quando entramos na Rua do Matoso, e disse: “Se vamos ter aula de alemão, então é melhor começarmos.”

“Hans, acho que você não entendeu nada. Eu não quero ter aula de alemão coisa alguma, isto foi apenas uma desculpa para arranjar uma companhia masculina e me aventurar pela cidade. Você me disse que estava disposto a me ajudar, não foi?” Anna tinha outros planos na cabeça, muito mais ambiciosos do que os meus. Eu gostava de jogar futebol, ficar à-toa no Largo do Rio Comprido conversando, ler meus livros de Arsène Lupin, fazer aeromodelismo, e olhar as meninas bonitas de longe. Ela, não. Queria aventura.

E foi assim que Anna inventou de roubar as lâmpadas das casas. Eu ficava olhando furtivamente para um lado e para o outro, ela entrava no jardim com uma habilidade impressionante, tirava a lâmpada do bocal, escondia na blusa e saía como se nada tivesse acontecido. Antes, ficávamos andando, de mãos dadas para lá e para cá, ora no lado de cá da calçada, ora no outro, escolhendo os alvos. Eu não sei por que eu me deixei envolver numa coisa destas. Morria de vergonha, só de pensar que ela fosse apanhada. Mas sentir as mãos dela junto às minhas, como se fôssemos namorados, era suficiente para me dar coragem. Depois virávamos a esquina, e ficávamos um tempo encostado ao muro, respirando fundo. Era muita adrenalina. Ela fazia coleção de lâmpadas, como o pai dela fez de selos. Quando eu passava pela casa da Paulo de Frontin, tinha que subir ao quarto dela, e ela sorrindo me mostrava a caixa de luz, como ela dizia. Cada dia mais cheia de lâmpadas. Brancas, vermelhas e verdes.

Eu fui gostando daquela intimidade. Comecei a sentir amor por Anna. Só podia ser isto. Pensava nela todos os dias, e ansiava por nossas aulas de alemão. Passei até a olhar para dentro das casas e identificar aquelas com iluminação de jardim, passíveis de furto. Anna foi me transformando em comparsa, não mais apenas um amigo. E ela sentia alguma coisa por mim? Não conseguia saber ao certo. Ela gostava de estar comigo, mas talvez apenas pela companhia, como ela havia dito. Nunca deixava que eu ultrapassasse uma barreira imaginária, e aquilo estava me deixando perdido. O máximo que eu fazia era pedir, de brincadeira, para ver as suas pernas, ela ria, e às vezes as cruzava de maneira descuidada de forma que as visse até a altura das coxas. Eram pernas lindas. Eu ficava extasiado. Mas também não passava disso. Eu comecei a pensar que aquilo não podia continuar assim indefinidamente. Eu haveria de morrer antes. Então, arquitetei um plano.

Convidei-a para irmos até a Quinta da Boa Vista. Ela nunca tinha ido sozinha. Dona Manuela consultada franziu as sobrancelhas, ficou meio pensativa, mas quando viu a minha cara da mais pura inocência germânica deve ter pensado: “Mas que diabos, este menino é inofensivo”. Anna fazia cara de quem só iria para não fazer desfeita e assim mesmo porque nós iríamos levar livros em alemão para estudarmos a tarde toda. Eu sorria intimamente.

Fomos de bonde. Por si só, para quem quase nunca saía do Rio Comprido, esta já era uma aventura. Mas eu tremia por dentro de ansiedade. Anna sorria, me apontava coisas pelo caminho, seus cabelos soltos batiam no meu rosto com a brisa. Para mim era o sonho. Chegando lá na Quinta, procuramos saber por onde entrarmos, onde começarmos o passeio, por onde poderíamos caminhar, eu já tentando os caminhos mais longos, lugares mais isolados e Anna me puxando para ver isto e aquilo. Em dado momento, por trás de umas árvores eu a peguei de jeito. Puxei-a para perto de mim, coloquei os braços em volta daquele corpo tão lindo, sentindo aquele perfume maravilhoso, e ela me olhou divertida, como que dizendo “E agora, Hans?” Beijei e ela se deixou beijar. Meu Deus, a coisa mais louca que fiz na minha adolescência e a melhor lembrança que tenho daqueles tempos. Foi um turbilhão que se apoderou de mim, quase desmaiei. Anna tornou-se, na Quinta da Boa Vista, minha primeira namorada e minha primeira amante.

Esta é a segunda parte de um folhetim, que pode ser lido no livro Maria Pia et cetera, de Carlos G. Vieira. Não leu a primeira parte? Clique aqui. Quer saber o resto da história? Faça um download na Amazon.com.br ou na loja Uiclap

*** Imagem de Martina Bulková por Pixabay 

(20 de agosto de 2021, em homenagem ao jovem 
Túlio Sérgio Grasseschi Bueno, que hoje aniversaria)

1 Comment:

  1. Anônimo said...
    Simplesmente delicioso este conto. Lido e relido, vai soando cada vez melhor e percebendo pormenores que o enriquecem a cada passagem. Muito bom. Parabens

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